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O conto de meia página

Jamais irei entender o que se passa dentro de mim. Era um estranho? Ainda seria um estranho? E no desespero de não saber, fez-se a dor de querer demais aquela que não tinha nome, ou tinha nomes demais que fugiam à minha compreensão.

Eu a chamava de Bianca.
Tinha jeito de menina e resquícios de mulher.

Fora ela embora?
Jamais irei saber.

Lembro-me apenas do dia do ônibus. Do dia no qual meu carro precisava de conserto, que até eu mesmo precisava ser consertado. Assim, quem sabe eu não amava-la tanto.

Quem sabe assim o sentimento não se fizesse ausente dentro de mim.

Estava ela feliz?
Jamais saberei.
E se isso soubesse , talvez em meu coração se veria o mínimo de paz.

Leia mais deste conto:

Casa comigo, moça de meias vermelhas
Amar você, odiar você
Um dia de fúria
A história sem nome. Parte II
A história sem nome
Aquela
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Casa comigo, moça de meias vermelhas

Acordei já anoitinha. A cabeça, pesada (tão pesada que podia sentir o movimento da cidade inteira dentro dela. Quem sabe até mesmo ouvir o barulho de uma escola de samba com todas as suas alas, blocos e bateria pulsando dentro do meu cérebro).

Não tinha nenhuma noção do quanto havia dormido, nem era capaz de nada me lembrar. Exceto, claro, um nome: Bianca. E então, de repente, não mais que de repente meu telefone tocou.

– Alô.

– Carlos, onde você está?

– Em casa, eu acho. Mas quem está falando?

– Heim? Carlos, é a Bianca. Onde você esteve?

– Em casa, Bianca, eu estive em casa e ainda estou em casa. Entendeu?

– Como você pode estar em casa se estou te ligando há três dias?

– Eu estava dormindo, Bibi, pelo menos eu acho que estava dormindo. Não me lembro ao certo.

– Você dormiu durante TRÊS dias.

– Acho que sim Bibi, eu não sei. Que dia é hoje?

– Segunda, hoje é segunda-feira.

– …

– Você já viu a lua hoje?

– Bianca, provavelmente estou apagado a três dias. Eu ainda não consegui levantar da cama. Como posso ter visto a lua?

– Não precisa ser grosso. (…)

(…) É a nossa lua. Me encontre aqui em casa, nós vamos sair.

– Agora?

– Agora. É a nossa lua, diz que sim, vai?

– Tudo bem.

Bianca desligou o telefone sem pronunciar mais uma palavra. Nem precisava. Eu começava a recobrar a memória, lembrar do que me fez dormir todo esse tempo. Recordei-me da coisa mais óbvia. Era eu escravo do coração de Bianca, já não podia negar-lhe nada.

Tomei um banho demorado. Escolhi cuidadosamente as roupas com as quais iria vestir-me. Entrei no carro.

♫ Fei-se mar, senhora o meu penar. Demora não, demora não. Vai ver, o acaso entregou alguém pra lhe dizer o que qualquer dirá parece que o amor chegou aí, Parece que o amor chegou aí Eu não estava lá, mas eu vi… ♫

Assustei-me ao chegar em frente ao prédio onde ela morava. Um ser estranho abriu, de forma bruta, a porta do carro e tascou-me um beijo na bochecha.

– Bianca, você cortou o cabelo!

– Pois é.

(…)

Já não podia segurar-me dentro das calças. Bianca estava linda. Os cabelos curtos e negros destacavam-lhe os olhos verdes. Usava uma saia curtinha,  meias vermelhas.  Penso que se fosse possível, e assim ela quisesse, casaria-me com ela naquela mesma noite.

Fora mesmo uma noite incrível. Eu, ela, a lua. Nada mais importava, o universo inteiro parecia pequeno diante de tamanha felicidade. Daria qualquer coisa, faria qualquer coisa para voltar atrás e viver de novo quele pequeno momento. Quem dera fosse possível, assim seria minha vontade feita se não fosse para frente o rumo da vida.

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Amar você, odiar você

Sempre senti-me confuso ao ouvir a expressão “filho da puta”. Na minha concepção, o xingamento é muito mais ofensivo para as biscas que vendem o corpo que para o homem que realmente o merece.  Imagino que a vida de uma prostituta seja triste o suficiente. Ora, se uma puta parir uma criança, que seja ao menos uma boa criança para trazer acalento, sossego e paz a sua vida infeliz e amargurada. Não é não? Rotular é muito fácil quando não se vive o que a outra pessoa vive e não  vê o que a outra pessoa vê.

Talvez esse pensamento me seja conveniente pois eu a amo, apesar disso não fazer nenhum sentido. Como eu poderia amar uma prostituta? Pior ainda, como eu poderia amar uma prostituta lésbica? Ou ainda pior, como eu poderia amar uma prostituta lésbica apaixonada por outra mulher? Como eu poderia? Como?
Aquele questionamento me fritava a cabeça, me inquietava a mente de tal forma que eu já não conseguia executar nenhuma tarefa com destreza. Sentia em meu peito tanta possessão que até meus pensamentos estavam prejudicados.

Bianca estava fazendo da minha vida um murmúrio, uma súplica, mesmo sem nada querer ela me fazia ouvir as trombetas do inferno, sentia-me péssimo, sentia-me como um personagem dantenesco.

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Um dia de fúria

Ler a História sem nome

e a História sem nome (Parte II) para acompanhar.

A vida é irreparável. É um trem desgovernado que passa por nós arrasando tudo. E depois que o trem passa, nada mais é o que era antes de ser o que foi.

A vida é ruim para lá da metade da nossa memória, também, para que lembrar de de coisas boas se nem cicatrizes elas deixam para nos lembrarmos delas?

Carla foi apenas uma coisa ruim na minha vida, uma cicatriz da qual eu lembrarei para sempre.

Um dia após aquela cena no apartamento de Bianca, resolvi atender uma ligação dela, e quando o fiz, vi meu sangue escorrer dos olhos até o queixo e cair no chão, gotícula por gotícula.

  • Alô, Carlos.
  • Bianca, acho melhor ficarmos sem nos falar por alguns dias.

Nem eu mesmo acreditava que tinha desligado o telefone na cara de Bianca, muito menos entendia o porque sentia tanta fúria dentro de mim.

Em casa, peguei uma garrafa de whisky, ainda lacrada, abri e comecei a beber, no gargalo mesmo, a música era Requiem, o sangue ainda me escorria dos olhos. Tomei alguns comprimidos e apaguei.

Quando acordei, estava na porta do apartamento de Bianca com uma faca na mão. Não deu para pensar direito, a raiva me consumia de uma forma que enfiei o pé na porta, arrancando o trico e o “pega ladrão” de uma vez só e adrentei ao recinto. Carla acordou assustada e foi a primeira de quem eu arranquei as vísceras, me deliciei a cada facada. O cenário era composto por aquela cortina vermelha e Bianca  sentada na cama, em estado de choque, me olhando com um olhar de pânico. Aguardava sua vez como um bezerro aguarda a morte.

Arranquei a faca de dentro do corpo de Carla e soltei-a no chão. Me aproximei de Bianca e bastou apenas uma, na jugular, para que ela caísse jorrando sangue vivo e eu voltasse a mim depois do surto.

Nessa hora esqueci quem eu era, não tinha nome, nem identidade. Me joguei no chão, primeiro de joelhos, depois por completo, comecei a rolar e me debater, chorando compulsivamente, contraía meus dedos das mãos e dos pés e, num sopro esguelado, acordei em pânico, suando,  em cima da minha cama. Fora tudo um sonho?

A vida é irreparável. É um trem desgovernado que passa por nós arrasando tudo. E depois que o trem passa, nada mais é o que era antes de ser o que foi.

A vida é ruim para lá da metade da nossa memória, também, pra que lembrar de de coisas boas se nem as cicatrizes elas deixam para nos lembrarmos delas?

 

Carla foi apenas uma coisa ruim na minha vida, uma cicatriz da qual eu lembrarei pra sempre.

 

Um dia após aquela cena no apartamento de Bianca, resolvi atender uma ligação dela, e quando o fiz, vi meu sangue escorrer dos olhos até o queixo e cair no chão, gotícula por gotícula.

 

  • Alô, Carlos.

  • Bianca, acho melhor ficarmos sem nos falar por alguns dias.

    Nem eu mesmo acreditava que tinha desligado o telefone na casa de Bianca, muito menos entendia o porque sentia tanta fúria dentro de mim.

    Em casa, peguei uma garrafa de whisky, ainda lacrada, abri e comecei a beber, no gargalo mesmo, a música era Requiem, o sangue ainda me escorria dos olhos. Tomei alguns comprimidos e apaguei.

     

Quando acordei, estava na porta do apartamento de Bianca com uma faca na mão, não deu para pensar direito, a raiva me consumia de uma forma que enfiei o pé na porta, arrancando o trico e o “pega ladrão” de uma vez só e adrentei ao recinto, Carla acordou assustada e foi a primeira de quem eu tirei as vísceras, me deliciei com a cada facada. Como cenário, tinha aquela cortina vermelha e Bianca sentada na cama, em estado de choque, me olhando com um olhar de pânico. Aguardava sua vez como um bezerro aguarda a morte.

 

Arranquei a faca de dentro do corpo de Carla e soltei-a no chão. Me aproximei de Bianca e bastou apenas uma, na jugular, para que ela caísse jorrando sangue vivo e eu voltasse a mim depois do surto.

 

Nessa hora esqueci quem eu era, não tinha nome, nem identidade. Me joguei no chão, primeiro de joelhos, depois por completo, comecei a rolar e me debater, chorando compulsivamente, contraía meus dedos das mãos e dos pés e, num sopro esguelado, acordei em pânico, suando , em cima da minha cama. Fora tudo um sonho?

 

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A história sem nome (Parte II)

Ler a História sem nome

Não entendo muito bem como a minha vida ruma ao encontro de caminhos tão incertos, mas, algumas coisas não precisam ser entendidas, vivê-las basta.

Observei aquela cena durante alguns minutos. A luz do sol que entrava pela janela era filtrada pela cortina vermelha e iluminava parcialmente aquela figura misteriosa, era um efeito interessante, bonito de se ver. A moça  estava de bruços, fumando um cigarro de maneira tranquila, nem parecia ter se importado com a minha entrada enfadonha. Ficamos alguns minutos em silêncio, até que Bianca disse. “Carlos, essa é a Paula, mas a gente chama ela de Carla”. Dei um sorriso de canto de rosto e falei. “Então essa é a sua…” “Namorada” Bibi completou sem que eu pudesse continuar a frase. Um enorme silêncio permaneceu naquele cômodo.

(…)

Comecei a reparar em Carla, como Bianca poderia ter algum sentimento por ela? Aquela moça vulgar, de cabelo loiro porcamente tingido, bota até no meio das coxas e mini short. Será que também era prostituta? Pior, será que era uma prostituta de rua?

Era a contradição dentro de mim berrando como uma criança de sete anos. Bianca era uma prostituta e mesmo assim eu a amava, como eu poderia sentir tanta repulsa por Paula só em imaginar assim ela também seria?

(…)

Depois de alguns minutos naquele silêncio fúnebre comecei a caminhar  ao encontro da mesma porta por onde havia entrado. “Carlos, espera, eu sei que não deveria ser assim”. “Bibi, você não precisa me dar nenhuma explicação. Mas eu preciso digerir isso tudo, depois nos falamos”, afirmei de forma dura e continuei meu caminho.

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A hitória sem nome

Bianca havia tornado-se prostituta por dois motivos. O primeiro deles, algumas pessoas chamam de picaretagem mas eu realmente acredito na falta de opção. Uma moça bonita com poucos referenciais louváveis, não teve pai e é difícil falar sobre sua mãe. Era uma perdida na vida até que veio para a capital e, aos 13 anos, sem ter aonde morar, foi aconselhada a pedir abrigo em um bordel.

O leitor deve estar se perguntando qual é o segundo motivo para que Bianca seguisse o caminho obscuro da prostituição. Eu posso afirmar que ele é ainda mais absurdo, nenhuma prostituta poderia sentir isso, é uma fronta para qualquer pessoa que possui sentimentos  saber que a escória da sociedade também os tem. Na verdade é preciso pensar como ela pensa e ver o que ela vê para entender o quanto Bianca sentia-se vazia de sentimentos, e para ela, assim também era o mundo, então, ser uma putinha ou não, não fazia nenhuma diferença já que os seres humanos são incapazes de sentir.

(…)

A primeira vez que eu encontrei Carla foi um dia após saber da existência dela (ler aqui, “O nome no pedaço de papel”). Liguei para Bianca e ela não atendeu, resolvi tentar a sorte em seu apartamento. Não sabia o que fazer, nunca tinha ido àquele prédio sem ser convidado, meu corpo todo se arrepiava. Subi as escadas correndo, cheguei ao sétimo andar ofegante, apartamento 702 A. Bati na porta: – “Bianca, você está aí? Abre pra mim, por favor, é o Carlos. Eu quero conversar, me desculpe por ontem”.

Depois de mais ou menos três minutos insanos, eu esmurrava a porta e me descabelava os cabelos, berrafa e uivava fronte àquela porta. E então ela se abriu (ainda com o pega ladrão engatilhado), sem pensar duas vezes, enfiei minha cara na fresta que dava para dentro e então escutei uma voz, tão calma como Bianca nunca havia entoado. “O que houve, Carlos”? “Bibi, abre a porta, por favor”. E então a porta se abriu. Fui entrando e fiquei com cara de caneca, sem ter o que falar, literalmente sem ação. Em cima do sofá cama estava a mesma mulher que eu vira beijando Bianca, naquele outro dia (ler aqui “A vida ao avesso”)

(continua)

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O nome em um pedaço de papel

É a vida que se faz ou somos nós que fazemos dela o que melhor nos convém? É como aquele homem que decidiu caminhar equilibrando no arco do viaduto. Ele poderia cair e se estrupiar todo, mas ele decidiu que era a coisa certa a se fazer. E se escolheu que aceitasse o que havia de vir. Eu lá em baixo, berrei desesperado “Senhor, não corra esse risco”. O homem me olhou com desdém, deu um gemido tedioso e disse  “Porque eu iria descer se esse caminho me faz feliz? Sabe rapaz, algum dia você irá entender que o equilibrista não é um louco e sim um perito”.

Respirei fundo e continuei meu caminho com aquelas palavras ecoando em minha cabeça. Aquilo não fazia nenhum sentido, mas depois eu descobri que fazia sentido sim, descobri também que conhecia aquele homem e aquele homem era eu.

Veja você, outro dia estava eu na casa de Bianca. Estávamos “dando uma geral” no apartamento dela e então eu vi um nome escrito em um pedaço de papel, olhei para aquilo, meu cérebro começou a funcionar, conectei alguns assuntos da semana e então perguntei “Bibi, quem é Paula? Você nem tem amigas”. O rosto de Bianca avervelhou, ela franziu a testa como se estivesse muito, muito brava “Carlos, você está apaixonado por mim? Me diga que não. Por favor, me diga que não.  Carlos eu sou uma prostituta, uma PROSTITUTA, você sabe que não pode gostar de mim, você sabe. Por favor, não tente me controlar, você não é nada meu”. Eu não respondi, não conseguia falar nada depois daquele chilique todo, não conseguia entender aquilo. Apenas fui embora deixando minhas coisas para trás.

(…)

♫ As I danced with the dead. My free spirit was laughing and howling down at ♫

“Alô”.
“Carlos, sou eu. Você esqueceu sua polchete no meu apartamento”.
“Puts, quando você não tiver cliente me fala que vou aí buscar”.
“Como assim, quando eu não tiver cliente? Você sabe que eu não costumo atender ninguém segunda-feira, é o dia da faxina”.
“Acho melhor não aparecer por aí hoje, você está muito alterada”.
“Você não entende, né?”
“Não mesmo, você surtou tão de repente”.
“Olha, das suas amigas eu tenho certeza que sou a mais incomum, então, por favor, não me peça para fazer nada que tenha nexo. A minha vida não tem”.
“Tenho que assimilar essa história. O nome no pedaço de papel e você ficou tão brava, parece até que está apaixonada”.
“Mas eu estou”.
“Vou desligar, depois conversamos sobre isso”.

Desliguei o telefone sem esperar a resposta, estava absurdado, como Bianca poderia estar apaixonada por uma mulher?

Leia mais sobre essa história aqui e aqui

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A vida ao avesso

Pode parecer fácil deixar tudo para trás, mas nunca é. Ir embora sem olhar para trás, Deus, como é difícil. Aliás, isso  se houver algum Deus lá em cima, nem ele saberá explicar como é doloroso ir embora assim de repente.

E assim era Bianca: aquele ser misterioso, sem raízes, sem história, sem memória. Um dia ela me contou. A família era do interior, uma cidadezinha de Minas Gerais onde havia apenas uma rua, uma igreja e um buteco (que de dia também servia de armazém). O lugarejo havia sido abandonado pelo homem e renegado por Deus. A “cidade” quase não recebia visitantes, não tinha calçada, asfalto ou postes de iluminação.

O último estrangeiro que passou pelo lugar foi o pai de Bianca, o moço era forte, bonito e viajava por longos dias em cima de sua bicicleta. Mas o homem veio e se foi da mesma maneira, sumindo na poeira da estrada de chão que a muito não recebia um beijo da chuva.  A jovem Angélica, grávida e sem nenhum amparo, teve sua chance quando a barriga ia fazer seis meses. A menina bolou um plano, colocou tudo que tinha em uma pequena mala e fugiu numa madrugada apenas com uma lanterna e uma garrafa d’ água. Embrenhou em meio à escuridão. Sentiu medo, sentiu frio, mas, ao amanhecer chegou à auto estrada. A moça se encontrou e foi a dedo até uma cidade próxima. Lugar onde se estabeleceu e pariu seu bebê, uma menina linda que teve o mesmo nome de uma das enfermeiras do hospital, Maria Alice.
Maria Alice era uma criança muito, muito branca, tão branca que ninguém acreditava que  era dali. As fofoqueiras tricotavam e muito se dizia a respeito da história daquela criança sem pai.  Fugiu de casa aos treze anos, partiu para a capital depois que sua mãe descobriu seu maior segredo. Mais tarde, teve que mudar de nome para não deixar rastros. Bianca trocou  sua história por um pingo de paz.

Ela não me contou nada ao certo, existem vários buracos na história dela. É um quebra-cabeças que ainda estou montando e, ontem, me veio mais uma peça. Eu estava indo de algum lugar para lugar nenhum. Veja, os lugares não são importes, pois, quando vi aquela cena perdi todo o norte, toda a direção e toda a razão. A deusa do sexo, aquela que ganhava rios de dinheiro dando prazer aos magnatas da cidade, estava ali, entre o motel e a rua, beijando uma outra garota atrás da grade.

Se você quer saber algo mais sobre Bianca ou sobre o narrador, leia o conto a baixo

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Aquela

É difícil falar algo sobre Bianca. Impossível decifrar, explicar ou desvendar aquele ser tão misterioso. Seria inútil tentar. Simplesmente inútil.

O olhar dela era algo misterioso. Não revelava nada mais que ela pudesse fazer. E, aquela boca carnuda, não me dizia nada além do que ela pudesse vivenciar. Era linda e amável. Bom, não linda e amável da forma convencional. Tinha essas qualidades para quem considerasse que uma prostituta assim pudesse ser.

Como sua profissão condecorava, a moça tinha um corpo voluptuoso, invejável a qualquer dama da sociedade. E tinha um sorriso (…) Ahhh, aquele sorriso dispensa qualquer comentário, na verdade seria injusto propor quaisquer elogio. O sorriso de Bianca era terrivelmente lindo, tão lindo que chegava a perturbar meu espírito e fazer tremer até meu último fio de cabelo.

Desculpe, ainda não proferi qualquer palavra sobre mim. Falarei agora então: Meu nome é Carlos Henrique e eu sou um homem comum, que tem problemas comuns e uma vida igualmente comum e chata, na verdade o termo mais apropriado para minha existência seria: banal como uma tarde de quarta feira. Sou um homem tímido e educado, daqueles que as mulheres raramente olham e quando olham querem-o apenas como capacho. Mas não posso dizer que desgosto, se não fosse assim eu jamais teria conhecido Bianca.

Minha história com a senhora estranha começou no primeiro ano da faculdade. Naquela época não existia um homem que comigo fosse amigo, nem nenhuma mulher que não quisesse fazer de mim o seu escravo. Mas no meio de tanta gente hostil tinha uma garota incrível, incrível demais para ser de verdade. Eu não podia imaginar que dentre pessoas tão hostis pudesse viver uma garota tão fascinante. Ela era inaceitavelmente pobre para aquela universidade. Sussurrava-se nos corredores que ela utilizava de métodos escusos para se sustentar. Isso porque além da faculdade de Direito mais cara da cidade a moça andava sempre impecavelmente alinhada. Frequentava os melhores salões, academias e esteticistas. Um disparate para uma garota que morava no edifício JK.

A verdade é que éramos dois estranhos, e, se não fossemos talvez nossos caminhos nunca tivessem se cruzado.  Foi uma baita trombada no corredor da faculdade. Cada um caiu para um lado e depois que nos levantamos tornou-se impossível nos separar.  Foi como se, no nosso encontrão, tivéssemos trocado energias de forma tão intensa que uma parte dela ficou em mim e uma parte de mim ficou nela.

Depois da trombada no corredor  começamos a fazer tudo juntos. Iamos à academia, ao shopping, ao cinema, ao teatro, ao clube. Eu sabia o que ela fazia para viver e, aos poucos, fui adentrando no mundo bucólico de Bianca.

Leia os desdobramentos dessa história aqui e aqui

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O homem sem coração

Ela abriu os olhos assustada, pegou o celular, olhou, tinha dormido demais. Sentiu um corpo em seu corpo, olhou para o lado e lembrou das últimas horas. Aquele era o segundo em menos de duas semanas. Levantou da cama, caminhou até a porta. Olhou novamente. Um homem nu em cima da cama. A cena era uma (quase) rotina em seu quotidiano.
Ela poderia ir embora e abstrair tudo o que acontecera, sempre fazia isso. Mas aquele era diferente dos outros. Ela nunca mais veria aquele sujeito, ou pelo menos era essa a tendência. Resolveu, por hora, voltar e ficar . Caminhou até a cama, tirou a roupa e deitou ao seu lado. Fechou os olhos e lembrou-se de todos os detalhes daquele relacionamento louco.
(…)

(…)
Havia chegado ao recinto lá pelas 22h, tinha pego o ônibus errado e perdeu-se pelo caminho, mas estava lá e era isso que importava. Do lado de fora, bateu palmas, tocou a campainha e depois de dez minutos… nada. Verificou se o portão estava trancado, depois da negativa não pensou duas vezes e adentrou no local.
Um pouco de medo em seu coração. Seria uma estranha? Aquele era o local onde deveria estar? A resposta se restringia a uma pesada sensação em sua pele. (Nunca havia estado em um lugar tão estranho).
[Entre o portão que acabara de abrir e a satisfação de suas dúvidas havia um longo corredor envolto a um muro de chapisco e, ao final dele, uma longa escada]. Quando chegou ao topo dela, viu os primeiros seres humanos desde que saira do ônibus. Sorriu para um homem forte, musculoso e careca que foi logo lhe oferecendo uma bebida.
(…)
Depois dessas lembranças concretas haviam várias abstratas. O homem transformado. A dança com desconhecidos. A garrafa de vodka. A garrafa, vazia, de vodka . O homem magro e simpático. O sarro com o homem magro e simpático. O quarto escuro com o homem magro e simpático. [Lembrava de algo a mais. Poderia ser o cabelo um tanto quanto peculiar]. Uma só frase ecoava em seu cérebro. “Se você não quiser transar comigo, eu vou te estuprar”. E, de alguma forma, aquela frase causava um reboliço em suas ideias.
Os flashs continuavam dominando sua mente. Agora com cores que explodiam nos acontecimentos. Assim como uma boate que esconde o sexo, combinando luzes coloridas e a escuridão. Lembrava do banheiro com o homem magro e simpático do cabelo um tanto quanto peculiar. Lembrava do espelho, do box, do chuveiro. Lembrava do banho de quase quatro horas, lembrava do amor enlouquecido. Lembrava da cama, do lençol enojado, lembrava do chão coberto por latex e fluidos de ambos os corpos, lembrava das mais de 40 latinhas de cerveja.

( …)

Abriu os olhos, resolveu avaliar o estrago. Olhou para o lado. O moço magro, simpático do cabelo um tanto quanto peculiar, ainda estava na mesma posição em que tinha ficado depois da última foda. (Estava morto?) Deu uns beijinhos estalados nas suas bochechas, para ver se acordava aquele que parecia inacordável. O moço estava imóvel. Depois de vários carinhos, viu que ele esboçava alguma reação. Respirou fundo com um gemido de alívio. O homem com aquela aparência exausta e, ao mesmo tempo, contentada, proferia palavras vindas de seus delírios. “Foi bom demais, você acabou comigo”. Ela não aguentou, deu uma gargalhada, não se aguentava de satisfação, tinha levado à nocaute aquele homem, tão viril e insaciável. Começou a fazer carinho em seu rosto e disse numa frase que saiu sem nenhum tipo de filtro ou censura: “Você não precisa ir embora, poderia ficar. Eu transaria com você todos os dias”. Foi a vez dele gargalhar: “Moça, eu transaria com você toda hora, eu queria viver só para foder contigo”.

Ela ficou mais algum tempo olhando para ele. Encarando aquele homem magro e simpático do cabelo um tanto quanto peculiar. Depois falou: “Quero fazer uma foto mental de você. É o homem mais viril que já tive”. Houve um certo silêncio. Minutos depois o homem retrucou. “Eu sou assim, viril e frenético, pois sou um homem sem coração”. Ela lhe fez uma cara de espanto e antes que pudesse falar qualquer coisa ele continuou: “Minha mãe devorou meus irmãos no ninho e quando chegou a minha vez, ela olhou para mim, viu que havia pouco sinal de bondade e então, em um único golpe, comeu meu coração. A minha mãe comeu meu coração no ninho, você entende”?

Nada mais precisava ser dito. A moça desapareceu em uma única frase: “Eu nunca irei te esquecer”.